domingo, maio 01, 2005

Onde não se responde (Claudia Letti)

Ele perguntou o que fazia com o que sentia por ela. "Guarda", ela respondeu, com a simplicidade de quem sabe que estas coisas, quando simplesmente existem, não precisam de um alojamento, um lugar, um espaço definido.

Guarda, ela lhe disse, na esperança de que ele levasse seu conselho ao pé da letra, esperando ganhar tempo para encontrar o guardado mais tarde, quando tudo fosse possível.

Guarda, assim, como quem não quer nada, como quem vai usar daqui a um minuto, quando sair do banho, quando sair à rua, quando for dormir, quando amanhecer.

Guarda solto em cima da cômoda, à vista dos olhos, no meio de outras bugigangas, e finge que nem toma tanto espaço. Ou guarda na primeira gaveta, embrulhado em um papel de seda — daqueles que envolvem a maça de Caetano —, no fundo, longe dos olhos, e mesmo que você não abra a gaveta saberá que está lá. Mas quando e se você abrir, o perfume que vier lá do fundo vai invadir o quarto, a casa, devolvendo ao coração aquele sentimento de pertencer.

Guarda, ela lhe disse, tentando lhe dizer tudo isso, mas pronunciou apenas "guarda", como se uma única palavra pudesse produzir cenários perfeitos para guardar o que ele sentia por ela. Então, ele lhe perguntou "onde"? Depois de tudo que ela tinha lhe dito em uma palavra, que significava entrega, um sim, um "eu acredito", ele lhe fazia uma nova pergunta.

Onde? E ela, sem querer saber de pedir, sem querer entender de sofrer, sem querer explicar que o que sentia por ele estava guardado, intenso, represado e inflamável, disse simplesmente: "Se não tem espaço, joga fora".

E nessa hora lembrou de Leminski. Coração para cima — escrito em baixo: frágil.

RG (Cláudia Letti)

Eu não sou esta que anda pela rua, que trafega nas estradas, que enche a bolsa de papeizinhos sem identificação. Não sou a que morre de amores, a que renasce a cada paixão, a que se infiltra nos seus sonhos sem pedir licença. Não sou uma, mas muitas. Mitificada no feminino e discriminada nas esquinas.

Eu sou apenas a mulher do homem que escolhi, mãe do filho que pari ou ainda um enxerto na carência de muitos. Sou todas e sou nenhuma. Portanto desconfie de qualquer uma delas. Você pode estar diante de uma franca ou uma dissimulada. Depende mais e sempre do olhar de quem vê.

O que importa não é quem eu sou, mas sempre a que eu posso ainda vir a ser. E, ao passear seus olhos por aqui, não esqueça: uma mulher, não importa qual, é sempre um mistério exposto.



Braile (Claudia Letti)



tuas mãos
tateiam
minha pele
cega
de desejo


Para Que Sejamos Necessários

[Bruna Lombardi]

Transfere de ti para mim
Essa dor de cabeça, esse desejo, essa vidência.
Que careça em ti o meu excesso
Que me falte o que tu tens de sobra.
Que em mim perdure o que te morre cedo
E que te permaneça o que tenho perdido.
Que cresça, se desenvolva em teus sentidos
Que em mim desapareça.
Dá-me o que de possuir tu não te importas
E eu multiplico o que te falta e em mim existe.

Para que nosso encaixe forme uma unidade.
Indivisível.
- Que não se possa subtrair uma metade.