Não se sabe quem começou a brincadeira. Talvez tenha sido ela, mas como nesse tabuleiro não dá pra movimentar as peças sem contar com a sensibilidade do parceiro, ela costumava dar-lhe todos os créditos. A brincadeira consistia em dar nome aos atos e sensações como se fossem coisas, sempre na tentativa de superar o outro em sagacidade, provocar reações e instigar palavras mais adequadas, pra não dizer sedutoras.
Assim, um abraço nunca era apenas um enlaçar de braços, um encostar de corpos, mas um ato que se comprometia com o assunto que estavam trocando. Quando falavam de viagens, por exemplo, o abraço vinha assinado como "turístico" e na palavra passeavam todos os caminhos que aqueles braços queriam percorrer, todos os países que seria possível imaginar e todas as culturas que poderiam conhecer: abraços gregos, turcos, indianos. Abraços internacionais. Abraços tridimensionais.
Os beijos então, não eram simplesmente lábios tocando outros lábios, mas tinham sabor, cor, espessura e eram suculentos em significados. O assunto poderia ser qualquer um, como a necessidade de fazer a feira, por exemplo, e lá vinha o beijo assinado no frescor de uma alface ou na eroticidade vermelha dos morangos. Neste quesito em especial, o tempo era o passatempo preferido. Um beijo molhado era um beijo com chuva. O iluminado era o beijo de sol. O selinho era tempo nublado — talvez identificando alguma rusga que nunca os consumia o suficiente pra deixar que os beijos perdessem seus sabores, cada dia e cada vez mais concentrados — como os sucos.
Esse era um jogo que não tinha regras muito definidas e sequer perseguia um vencedor. Como se vê era uma brincadeira de aprisionar os atos em sensações descritíveis mas nem sempre decifráveis pra quem tentava entender o que acontecia com eles sem conhecê-los direito. Eles brincavam sempre como se tivessem pequenos dicionários amorosos a lhes ditar palavras que pudessem alcançar o outro em essência e dimensão.
Até o dia em que cansaram de jogar "conversa dentro" e foram tratar de viver a vida que tinham planejado juntos. Elas, as palavras, pareciam ser menos necessárias então, e foram sendo consumidas uma a uma, transformando-se em olhares intensos, madrugadas silenciosas e dias atentos.
E muito tempo depois, quando o filho, ainda pequeno, perguntou-lhes o que era um dicionário, ela respondeu — não sem uma ponta de nostalgia — que dicionário também significava uma história de amor.
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Saudades...